quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Gastronomia. Cinema e Gastronomia: A Festa de Babette - Pedro Vicente Costa Sobrinho

Cena do filme: Babette na cosinha manuseia os ingredientes

 
O Cineclube Oscarito, da cidade de São Paulo, organizou um ciclo de filmes denominado “A Comida no Cinema”. Entre os filmes programados estavam, se não me falha a memória, A Comilança, de Marco Ferreri; Montenegro, de Dusan Makavejev; A Última Ceia, de Tomás Gutierrez Alea; O Discreto Charme da Burguesia, de Luís Buñuel, e Satyricon, de Federico Fellini.
 
A Gula, revista mensal dedicada à gastronomia, na seção “Receita de Cinema” nos números 25 e 26, publicou interessantes artigos sobre os filmes Como Água para Chocolate, de Afonso Arau, e “Tomates Verdes e Fritos”, de Jon Avnet, tendo como centro de atenção a culinária.
 
Com exceção de A Comilança e Como Água para Chocolate, nos filmes relacionados, a comida é tratada, grosso modo, como dizia Brillat-Savarin: “pressupondo apenas a fome e o que é preciso para satisfazê-la”. Na série de artigos que ora inicia-se, pretende-se comentar filmes quando esses reservarem na sua narrativa o papel central para a gastronomia, realçando os valores estéticos inerentes a esta forma singular de expressão da criação artística.
 
A exemplo de Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, A hora e a vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos, O Leopardo, de Luchino Visconti, e os Vivos e os Mortos, de John Huston, A Festa de Babette, de Gabriel Axel, é uma das mais felizes adaptações de obra literária ao cinema. O filme de Gabriel Axel, diretor dinamarquês há muito radicado na França, tem como base o conto homônimo da escritora Karen Blixen, conhecida sob o pseudônimo de Isak Dinesen.
 
Para começo de conversa, considero o conto de Isak Dinesen gastronômico e também, por excelência, cinematográfico. Inclusive um seu outro romance, A Fazenda Africana, foi adaptado para o cinema por Sidney Pollack, e lançado no Brasil com o título Entre Dois Amores. As enunciadas características de sua obra devem ter, de certo modo, facilitado na elaboração do roteiro. No entanto, cabe realçar que a narrativa cinematográfica, de Gabriel Axel, assumiu plena autonomia com relação ao conto que lhe serviu de inspiração, criando um dos melhores momentos do cinema nos últimos vinte anos, e, com certeza, uma de suas obras-primas.
 
O filme é ambientado na Jutlândia, Dinamarca. Duas das personagens centrais, as irmãs Martine (Birgitte Federspiel) e Filippa (Bodil Kjer) viviam sozinhas, celibatárias por opção, inteiramente dedicadas à continuação da obra piedosa e evangelizadora do seu pai e mestre. A insólita chegada de Babette (Stephane Audran), no frio inverno de 1871, alterou sensivelmente o cotidiano das duas irmãs. A partir de então, as irmãs passaram a contar com uma criada francesa para todo o serviço doméstico, liberando-as para cumprir melhor a missão apostolar e caridosa junto aos fiéis e desamparados da pequena cidade.
 
Martine e Filippa haviam sido, quando jovens, objetos da paixão de dois homens bem diferentes, porém semelhantes na pureza e força do amor dedicado a cada uma das irmãs. E também pela perturbação que elas causaram nos seus espíritos. A mais velha, Martine, coube perturbar o espírito e frustrar as intenções do jovem oficial Lorens Löwenhielm (Jarl Kulle). A Filippa coube fazer o mesmo ao impetuoso e decidido cantor lírico francês Achille Papin (Jean Phillippe Lafond), que ao descobrir por acaso seus dotes vocais, pensara com ela formar o mais sublime dueto de cantores que Paris jamais conhecera.
 
Babette Hassant é apresentada às irmãs (Martine e Filippa) através de carta de Achille Papin. Nela, em seu nome, pede que a hospedem. O trecho final é lacônico: Babette sabe cozinhar.
 
O infortúnio que causou a fuga de Babette foi motivado por sua participação nas barricadas, junto aos revolucionários da Comuna de Paris. Fora acusada de “petroleuse” (incendiária), presa e milagrosamente salva do massacre perpetrado pelos generais Galliffet, Cavignac e outros contra os comunardos. Mais de 20 mil pessoas foram mortas nas ruas de Paris naquele trágico ano de 1871.
 
Acolhida pelas piedosas irmãs, Babette de rápido aprendeu a fazer a sopa de cerveja com pão, servida aos velhos e desamparados da cidade. A receita era simples: uma porção de pão colocada numa tigela com água e cerveja; após algum tempo, passava-se a mistura numa peneira e levava-se ao fogo para cozinhar. Além disso, lhe fora ensinado como cortar e cozer bacalhau em pedaços. As inovações feitas por Babette nas peças do humilde cardápio foram logo sentidas pelo seu público, que não só passou a satisfazer o estômago mas a exercitar também o prazer do gosto.

Cena do filme: Babette no Mercadinho da Aldeia
 
A narrativa de Gabriel Axel vai, pouco a pouco, destacando a partir daí o motivo central da trama: a discussão sobre a arte na sua relação com o criador e o público. A gastronomia como arte interativa, não só enquanto combinação dos sentidos (gosto, olfato, audição, vista e tato), mas por que nela os atos de criar, fazer e apreciar estão intimamente relacionados, prestou-se melhor ao tratamento do tema via discurso cinematográfico.
 
Com o decorrer dos anos de convívio com as irmãs, a França vem a ser para Babette uma simples lembrança. Um bilhete de loteria, renovado todos os anos por uma fiel amiga, é a única ligação que mantém com o país de origem. A notícia de que havia sido premiada pela sorte, com 10 mil francos, fez renascer nela a vontade de criar e dar vazão às emoções ao longo de doze anos reprimidas.
 
Ao receber a notícia, as irmãs Martine e Filippa ficam profundamente preocupadas com a possibilidade da perda de Babette, agora, em relação a elas, uma pessoa rica. O ano não estava nada fácil para a seita que abraçaram. As desavenças entre os poucos fiéis comprometiam a obra do seu pai e mestre. Pensam num jantar comemorativo do seu centenário como motivo para reconfraternizar os fiéis pela lembrança dos ensinamentos do mestre, renovando-lhes a fé e a esperança. Pensam pedir a Babette que ficasse até 15 de dezembro, o dia festivo.
 
Babette antecipa-se, no entanto, às irmãs e oferece-se para preparar o jantar: não seria apenas mais um jantar, mas ao estilo francês e pago com o seu dinheiro. O motivo era oportuno para o artista manifestar o poder de sua criação em mais uma obra. Para ela, enquanto gastrônomo, era ainda uma obra incompleta, pois lhe faltava o público, o apreciador percuciente. Afinal os membros da seita eram gente pobre e humilde, de gosto rude e limitado.

Cena do filme: Chegada dos ingredientes para o Jantar à Francesa
 
À medida que se aproximava o jantar um cortejo de iguarias desfila na tela. Todas encomendadas na França. As irmãs, cuja convicção puritana leva a considerar a comida como fonte de pecado, ficam preocupadas. Temiam que o dia do mestre fosse transformado por Babette num “sabat de bruxas”. Para evitar qualquer ato impuro, os fiéis foram orientados a não pronunciar uma única palavra no jantar, sobre a comida e a bebida; limpando da língua todo o paladar, desprezando o deleite e o prazer dos sentidos.
 
Os convidados agora eram doze. O então general Löwenhielm, que há trinta anos não visitava a tia, chegara inesperadamente. Para ele essa visita significava um ajuste com o passado. Queria finalmente comprovar o acerto da sua escolha de juventude: ao refrear sua paixão por Martine e tomar a decisão de esquecê-la. O jantar não seria mais do que um pretexto.

Cena do filme: Convidados à mesa. Destaque: General Löwenhielm
 
Mesa posta. A câmera de Axel movimenta-se captando os convivas em conjunto e isoladamente. No semblante dos convidados a revelação da sua apreensão interior. Nos fiéis o temor do pecado. No general as lembranças do passado, a desconfiança da comida sem o prazer da mesa.
 
O serviço é francês. Os pratos foram servidos um de cada vez, seguindo rigorosamente a indicação de Grimod de la Reyniére: (...) cada prato deve ser o centro único em torno do qual gravitam todos os apetites. De início, a sopa de tartaruga; a câmera revela, em primeiro plano, a surpresa e a satisfação do general ao degustá-la. Acompanhou as primeiras entradas um amontillado, vinho Jerez de cor âmbar, seco e fortificado, de origem espanhola. O fecho das entradas foi o Blinis Demidoff, que leva o general ao quase êxtase, além do espanto ao verificar que ao seu redor nenhum dos convivas demonstrava a menor emoção. Acompanhou o prato um Champagne Veuve Cliquot 1860. Pelo semblante do general, ao sorver os primeiros goles, esse vinho era de uma safra excepcional.

Sopa de Tartaruga
 
Ao observar que tinha à mesa um apreciador, Babette orienta ao seu ajudante de serviço cuidados especiais com o general. Seu copo não devia ficar vazio. Tinha naquele conviva de última hora, a oportunidade do reconhecimento cabal da força de sua magia. Nada mais conveniente do que citar o aforismo de Brillat-Savarin: Os animais pastam, o homem come: apenas o homem de espírito sabe comer.
Blinis Demidoff
 
As iguarias foram servidas uma após a outra, num ritmo que impedia qualquer sobreposição de pratos. A câmera enquadra de cima para baixo os pratos, realçando o fascínio e seu domínio sobre os convivas, e, ainda, sua beleza e plasticidade. Cada plano compõe um quadro a ser emoldurado. Dos pratos principais o destaque para o Cailles en Sarcophage. Este prato, um assado de codornizes ao forno tendo como envoltório uma massa folhada, imobilizou o general. Suas lembranças, pouco a pouco, o transportaram a Paris. Um jantar que lhe foi oferecido no Café Anglais onde lhe serviram aquele prato, criado por uma mulher. O maior gênio culinário do momento e chef de cuisine do restaurante. O Café Anglais era considerado, segundo Jean-Paul Aron, no seu livro Le Mangeur du XIXe Siècle, ao lado do Philippe e do Durand, uma das melhores casas de repasto de Paris, à época. Fora consagrado com a cotação máxima: trois astérisques.

Cailles en Sarcophage
 
Depois dos pratos principais, os queijos; em seguida, as sobremesas doces e as frutas (tropicais e temperadas). Após o café, um cognac superior, um fine champagne.

Serviço de queijos


A prima donna do jantar foi o Champagne, mas um tinto servido também mereceu referência especial: um Clos Vougeot 1846, do Philippe, na Rue Montorgueil. Este vinho é um Borgonha, originário dos vinhedos da Côte de Nuits, bastante apreciado à época, aparecendo nas cartas de vinhos de restaurantes famosos em Paris, ao lado dos Romanée-Conti, Chambertin, Mouton-Lafitte, Chateau-Margot, Chateau-Latour, entre outros. Todos considerados até hoje como excepcionais tintos franceses.

Babá ao Rum
 
Acabada a festa, tudo mudara. A câmera de Axel percorreu o semblante de cada conviva, revelando uma satisfação e um gozo quase celestial. Transportara para o cinema o clímax descrito no livro de Isak Dinesen: “O tempo em si tinha se fundido na eternidade. Bem depois da meia-noite as janelas da casa brilhavam como ouro, as canções douradas fluíam para o ar invernal”.
 
Os dez mil francos ganhos na loteria foram dissipados. Nada no entanto a lamentar, era o preço normal de uma refeição para doze pessoas no Café Anglais. Esse jantar marcara o retorno triunfal de Babette ao cenário artístico, com pleno domínio de sua arte e técnica. Como antes, pudera transformar um jantar (...) numa espécie de caso de amor, de categoria nobre e romântica, onde não se faz mais distinção entre o apetite e a saciedade do corpo e do espírito. Retornar a Paris, nunca. Seu público não mais existia. Restava-lhe porém uma certeza: era uma grande artista, e (...) um grande artista nunca é pobre, pois tinha algo que as outras pessoas desconheciam.
 
O filme de Gabriel Axel, A Festa de Babette, pode significar para o autor um dilema: a exaustão de sua capacidade criativa. A partir dele é difícil a superação, a exemplo de Juan Rulfo com seu romance Pedro Páramo. A gastronomia, o cinema e seu público sentem-se contudo plenamente lisonjeados e satisfeitos.

 Veja receita de Babá ao rum, no blog de Zezé Pina.

5 comentários:

Anônimo disse...

A festa de Babette me inspirou para realizar e até criar pratos que me dessem e aos meus convidado o maior prazer. A leitura do seu artigo sobre o filme, reforçou em mim o desejo de voltar ao filme e melhor acompanhar a sua trama.

Anônimo disse...

A festa de Babette, que assisti mais de uma vez, não me causou a emoção que tive ao ler seu artigo . Voltarei ao filme mais uma vez, pois agora tenho um guía seguro para apreciá-lo e degustar virtualmente suas iguarias.

Anônimo disse...

Festa de BABETTE.JÁ SAIU EM DVD? No cinema,aqui em Rio Branco, é impossível de se ver. O seu artigo me deixou ansioso para assistir o filme.
Gean Carlos

Anônimo disse...

Um clássico fica para sempre em nossa memória estética; e o seu artigo vai longe na apreciação dessa grande obra.
Caio César

Anônimo disse...

Gostei muito do que você escreveu sobre a estupenda “A festa de Babette” e “O professor aloprado” (...) não conhecia esse seu talento, regozijo-me com a descoberta porque, além de gostar muito de cinema, já fui rato de cinemateca...

Ivan Junqueira – poeta e ensaísta (da Academia Brasileira de Letras)