quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Memórias – Varal das Lembranças: Minhas bibliotecas (1) Pedro Vicente Costa Sobrinho.


Um dos livros de orientação Adventista que me foi presenteado pelo meu pai.
 
Até a idade de treze anos eu não possuía ainda uma biblioteca no sentido  estrito da palavra, mesmo que, desde os seis anos, eu já tivesse começado a colecionar revistas de quadrinhos e juntado um bom acervo, principalmente de Tarzan, Fantasma, Capitão Atlas, Zorro, fotonovelas, foto cine,  revistas esportivas e folhetos de  literatura de cordel. Outras revistas, após a leitura eram certamente descartadas por meio de trocas entre amigos e conhecidos na porta do Cine Samuel Campelo, em Jaboatão, nas tardes das sessões de cinema, ditas matinês.

As casas em que eu morei durante minha infância e adolescência eram todas muito precárias, seus cômodos somente atendiam as necessidades mínimas de minha até então pequena família;  com o passar dos anos  as condições pioraram,  pois a família cresceu e o mesmo  espaço  teve que acomodar seus novos membros.  Os meus livros escolares, revistas de quadrinhos, álbuns de figurinhas e a coleção de cartazes de cinema eram guardados debaixo de minha cama sobre o chão de cimento, forrado por folhas de jornais ou de papel de embrulho.

A primeira biblioteca que desde os sete anos eu regularmente frequentava, pertencia a tia Neném. Algumas centenas de livros e revistas de fotonovelas e quadrinhos arrumados numa tosca estante de madeira, cujas prateleiras eram forradas com papel madeira, muito usado para encapar livros e cadernos escolares. Tia Neném semanalmente limpava seus livros e revistas para protegê-los da poeira e da umidade, e porque também tinha por eles zelo e carinho todo especial. O pequeno acervo havia herdado de meu padrinho e primo João Costa, que falecera, creio eu, em 1950, e o seu cuidado com os livros e revistas revelava a meu modo de ver uma maneira dela manter viva  a lembrança e decerto a presença  de seu amado filho na casa. Até aos meus seis anos de idade, eu estava deveras proibido de mexer nos livros e revistas, com certeza porque ao pequeno acervo eu poderia causar danos irreparáveis, usual comportamento  em crianças de minha idade não acostumadas a lidar e conviver com livros.

Tia Neném era a irmã mais velha de meu pai e casada com meu avô, pai de minha mãe. A casa em que meu avô e ela residiam ficava na Rua Padre Roma, não muito distante de onde eu morava. Por hábito, todos os dias eu visitava minha tia, a quem considerava minha mãe adotiva, pois desde os três anos de idade, ao falecer minha mãe, ela me acolheu em sua casa.  Logo depois que meu pai voltou a casar-se, levou-me com ele apesar dos protestos e argumentos de tia Neném.  Desde muito cedo, eu me acostumei a sentar no chão de cimento de sua casa, ao lado da máquina de costura  Singer, na qual  dia e noite ela pedalava ao confeccionar calças e camisas sob encomenda para um feirante de nome Júlio, e então pedia para que ela me contasse histórias de  almas do outro mundo, enredos de filmes, contos de fadas e  fábulas que faziam  parte  de  seu extenso e quase inesgotável repertório, um verdadeiro mar de histórias.  Até os dez anos eu ainda, vez por outra, frequentava os serões de leitura em que ela lia, em voz alta,  romances e  fotonovelas para o meu avô, Chico Antonio.

O grosso dos livros que tia Neném herdara do filho, João Costa, era de obras psicografadas ou de doutrinação espírita kardecista. Meu primo João,   era um feirante letrado e leitor que tinha como religião o espiritismo. Ele com sua mãe  frequentavam o Centro Espírita Gamaliel. Além das muitas revistas de quadrinhos e fotonovelas, principalmente a revista Grande Hotel, havia também romances de cujos autores ainda me lembro: Victor Hugo, Alexandre Dumas, pai e filho, Upton Sinclair, Sinclair Lewis, Ponson Du Terrail, Michel Zevaco, Rafael Sabatini, Blasco Ybáñez, Karl May, Emilio Salgari, Julio Verne, Michel Gold (Judeus sem dinheiro), Joaquim Manoel de Macedo, Manuel Antonio de Almeida, Lima Barreto, Monteiro Lobato, Machado de Assis, José de Alencar, Humberto de Campos e Alan Kardec, desse os Livros dos Espíritos e dos Médiuns, e O Evangelho segundo o Espiritismo. Dos romances psicografados eu nunca me esqueci de Lídia, A vingança do Judeu e a Barqueira do Juca, porque os li mais de uma vez. Além disso, lembro-me da coleção de estampas do sabonete Eucalol, as revistas esportivas e os almaques de cidades brasileiras do IBGE, nos quais aprendi coisas simples, mas que até hoje estão hospedadas na minha memória. Esse pequeno acervo de livros me fora prometido desde que meu padrinho faleceu, e sua posse efetiva aconteceria logo que eu viesse a concluir o curso primário. O livre acesso eu sempre tive a esses livros e revistas dessa pequena biblioteca, porém seu acervo permaneceu na casa e sob a guarda de tia Neném; contudo, eu sempre considerei  que esses livros e revistas eram de fato meus, até porque, afora minha tia, eu quase fui seu único, exclusivo e solitário leitor. Este acervo foi sem dúvida minha primeira biblioteca.


Livro de orientação Adventista que recebi de presente de meu pai.
 
1956, eu me mudei para Ribeirão. Levei comigo na mudança os livros escolares, um livro de Admissão ao Ginásio que me foi dado pelo meu saudoso primo Cláudio Cícero de Araújo (Claudinho), revistas, álbuns de figurinhas, cartazes de cinema e, inclusive, a cartilha de Alice, que usei na primeira série do curso primário. Incorporei a esse pequeno acervo, a Aritmética de Luis Trajano, alguns romances de Edgar Rice Burroughs, literatura de cordel, mais quadrinhos e fotonovelas e, vez por outra, adquiria revistas esportivas e do rádio, e folhetos com letras de música popular brasileira.  Em 1958, por haver passado em 2º lugar no Exame de Admissão ao curso Comercial Básico da Escola Técnica de Comércio de Ribeirão, meu pai me presenteou com alguns livros:  Nutrição e vigor, Dr. Antonio A. de Miranda; Colunas do caráter, S. Júlio Schwantes,  e Matrimônio feliz, de Luiz Waldvogel, todos de orientação adventista, editados pela Casa Publicadora Brasileira. Meu pai, na sua santa ignorância, fora induzido por um vendedor de livros religiosos a adquirir essas preciosidades. Eu estava fora da cidade, em visita à casa de meu avô e de minha tia Neném, e nada pude fazer. Ao chegar eu demonstrei minha insatisfação, mas ele ficou raivoso e alegou que não mais me daria como presente  livros, pois eu era mal agradecido. Para compensar, ele me presenteou com um relógio de pulso e ainda me ensinou como nele ler as horas. Este relógio eu usei até a idade de 19 anos, quando então por descuido um gatuno de praia me surrupiou em Natal.

Livro de orientação Adventista que me foi presenteado pelo meu pai.
 
Em Ribeirão, igualmente a Jaboatão, não havia bibliotecas públicas. Pelo menos em Jaboatão essa lacuna era precariamente suprida pelo Grêmio Lítero-Recreativo, que dispunha de um pequeno acervo de livros disponíveis para leitura de  seus associados, geralmente pessoas da classe média local. Nunca tive acesso aos livros dessa biblioteca. Nas duas cidades não havia livrarias, as pequenas papelarias existentes não vendiam livros, com exceção de alguns livros didáticos adotados nas escolas de ensino primário e ginasial. Na Escola Técnica de Comércio de Ribeirão, por sua vez, havia em sua secretaria duas grandes estantes fechadas contendo livros, aos quais os alunos não tinham acesso.

1959. Até meados desse ano, os meus livros eram arrumados sobre um lastro de madeira que ficava embaixo de minha cama. Já era um acervo de mais de cem títulos, constituído por revistas de quadrinhos, do rádio, cinema, esportivas e fotonovelas, e muitos folhetos de cordel, livros didáticos, de literatura em geral e de ficção. Através de anúncio publicado em revistas eu tomei conhecimento da Editora Gertrum Carneiro (Tecnoprint Gráfica), hoje Edições de Ouro, que vendia livros de bolso pelo reembolso postal. Pedi catálogos e passei, então, a encomendar livros para mim e para outras pessoas do meu círculo de amizade. Os livros eram entregues pelo preço do catálogo, mas em cada 10 títulos adquiridos eu recebia um livro de minha escolha gratuitamente. Não raras vezes, eu tive que usar meus parcos recursos para pagar o valor das encomendas que já se encontravam na agência dos Correios; é que alguns amigos, quer por desconfiança quer por não ter ora o valor para pagar o que encomendara, deixavam-me com o abacaxi nas mãos: ou retirava, ou os livros eram devolvidos  para editora; o pior é que se isso viesse a acontecer eu não poderia voltar a fazer nenhum pedido através do reembolso postal. Lembro-me ainda que, vez por outra, eu tive que ficar com livros que não havia encomendado, por conta da falta de pagamento de alguns não raros caloteiros.

Alguns autores, assuntos e títulos dessa minha segunda biblioteca, eu ainda consigo me lembrar: José de Alencar, Júlio Ribeiro (A carne), Machado de Assis, Joaquim Manoel de Macedo, Raul Pompéia, Aluisio de Azevedo, Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Coelho Neto, Castro Alves, Julio Diniz (As pupilas do senhor reitor), Luís de Camões, Alexandre Herculano (O Monge de Cister), Pitigrilli, Livro de São Cipriano, Coleção Sem Mestre (francês, italiano, inglês, espanhol, alemão, hipnotismo, mágica etc.), Luís A. P. Victoria (Fala e escreve corretamente a tua língua), ficção policial (Edgar Wallace) e de espionagem.

Fins de 1959,   meu pai faliu com sua mercearia. Ele negociou o ponto e as instalações com um seu antigo freguês, reservando pra que ficasse em sua posse apenas uma mobília, um grande fiteiro de madeira e vidro, com prateleiras onde expunha à venda pães, bolos e bolachas. Logo em seguida esse móvel me foi repassado, e disse-me meu pai: “já é hora de cuidar melhor dos seus livros, retire-os do chão e arrume neste fiteiro que agora é seu”. Depois de limpar e arrumar os livros, vaidosamente eu fiz questão de mostrar a biblioteca para meus amigos mais próximos e alguns colegas de turma na escola.

1960. Voltei a Jaboatão pra morar de novo com meu avô e tia Neném. Levei comigo poucos livros, entre eles, lembro-me bem: Admissão ao Ginásio, Aritmética e Álgebra de Antonio Trajano, gramáticas de Artur de Almeida Torres e todos aqueles volumes que eu havia usado durante o curso comercial, nada de ficção. Durante o tempo em que novamente  fiquei morando com tia Neném não comprei nenhum livro nem sequer revista, pois estava sem emprego e portanto sem nenhum tostão.  Logo ao chegar ao Alto da Bela Vista, passei a ocupar meu tempo livre dando aulas de recuperação à meia dúzia de alunos ou preparando alguns para  os exames de admissão ao ginásio. Nessa atividade eu ganhava muito pouco, pois os meus alunos eram muito pobres e as mensalidades que podiam pagar de longe não cobriam minhas despesas escolares. Em decorrência disso, eu tive que me evadir do curso que fazia na Escola Técnica de Comércio de Recife, pois a dívida contraída pelo não pagamento das mensalidades era então impagável. Os trocados que usava para ir raramente ao cinema eram dados por meu tio João Santana e pelo meu avô Chico Antonio. Ainda bem que os novos amigos, especialmente Sebastião Ricardo, Dauri Ximenes, Otoniel Ricardo e Zuca dispunham de alguns livros e regularmente me cediam por empréstimo. Além desses amigos, um vizinho de nome Miltom também me emprestou alguns livros. Todavia, aquela que eu considero a minha primeira biblioteca continuou a ser a principal fonte onde eu podia me abastecer de leitura.

1961. No começo do ano, meus pais voltaram pra Jaboatão, e fui morar com eles numa casa quase defronte a que residia meu avô e tia Neném. Com a mudança, meus pais com eles trouxeram o fiteiro com meus livros, que foi posto na cozinha,  no recanto em que eu dormia,  perto da cabeceira de minha cama. Quase meio ano depois eu tive grana pra novamente voltar a adquirir material de leitura, pois havia conseguido emprego como empacotador no balcão do Café Leão do Norte, firma comercial de Joaquim Matoso & Filhos, por mediação do meu primo Aécio, que era gerente da loja. Este ano foi muito importante pra minha biblioteca e também, certamente pras minhas leituras, pois vim a conhecer através de Natanael, o poeta Alberto da Cunha Melo. O convívio com Alberto foi muito instigante e ele me abriu novo horizonte de preocupações e de leitura. Poesia, literatura, música, teatro e cinema passaram a ser por mim apreciados de agora por diante com  outro olhar. Alberto me aproximou do grupo de estudantes que editavam o jornalzinho Dia Virá. O amigo de Alberto mais próximo era José Luis de Melo, que por mediação dele também se tornou meu amigo.

1962. Ano em que comecei a trabalhar no balcão do Café Ouro Preto, firma Antonio C. Sá Barreto. Carteira profissional assinada, salário mínimo,  previdência social, direito à férias e 13º mês. Passei a contribuir para o orçamento doméstico, mas havia sobras para o ingresso das sessões de cinema em salas de Jaboatão e Recife, e ainda para compra de livros e revistas. A biblioteca novamente passou a ser suprida com novas aquisições, além de obras de ficção, eu privilegiei a compra de literatura social e política; esta última, por indicação inicial do amigo Sebastião Ricardo, e mais adiante pelos camaradas comunistas, porque no ano de 1962 eu me filei ao Partido Comunista Brasileiro.

1963. Neste ano eu retornei a escola e me matriculei na terceira série do curso ginasial no Colégio Estadual Jaboatonense.  Ano de envolvimento intenso: Partido Comunista, sindicatos, movimento estudantil, jornalzinho Dia Virá, eleições para Câmara de Vereadores e Prefeitura de Jaboatão. No começo do ano eu fui demitido do Café Ouro Preto, mas em compensação o PCB, por mediação do saudoso Davi Capistrano, fez-me profissional do partido, com ajuda mensal de um salário mínimo. A compra de livros continuou: Obras Escolhidas de Marx e Engels, Josué de Castro, Jocelyn Vilar, Nelson Werneck Sodré, George Politzer, coleção Cadernos do povo brasileiro, Amaro Quintas, Lenine (tudo que foi publicado pela Editora Vitória); ficção e poesia, os livros que eu, então,  li,  foram emprestados pelo amigo Alberto da Cunha Melo. Os livros do meu acervo já não cabiam no velho fiteiro, e muitos voltaram para debaixo da cama, agora arrumados num lastro de madeira forrado com papel de embrulho.

1964. Golpe militar de 1º de abril, escondi-me na casa do tio João Santana, e depois em Prazeres, casa do amigo Sebastião Ricardo. Começo de maio, eu exilei-me em Natal, onde fui acolhido pela minha saudosa tia Nazaré. A devassa em Jaboatão foi grande,  e a polícia durante dias ficou de ronda em nossa casa; e meu pai, então coagido pelo assédio policial, reuniu, ateou fogo e enterrou as cinzas de todos os meus livros, evitando com isso que minha biblioteca fosse usada como mais uma peça agravante contra mim, no provável processo por atividades subversivas e vínculos com o partido comunista.

A primeira biblioteca herdada do meu primo e padrinho João Costa, e a mim prometida por tia Neném, continuou sob sua guarda e não resistiu às suas agruras e a ação do tempo, pois ela perdera sua casa e passara a viver como agregada na casa do meu pai. O destino foi um algoz rigoroso com a bela, terna, sábia e solidária tia Neném. As minhas duas primeiras bibliotecas nunca se juntaram, caminharam paralelas e tiveram igual destino, se esfumaram: uma virou cinzas, e a outra com o auxílio da umidade, fungos e traças o tempo a levou. O meu novo projeto de biblioteca teve de esperar mais algum tempo, por me faltar dinheiro e espaço no primeiro ano do involuntário exílio em Natal.

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