terça-feira, 30 de abril de 2013

Memórias. Varal das Lembranças: O que não me esqueci dos primeiros passos como editor aprendiz (1)



Tipografia: orígens

Ribeirão, 1957. Eu estudava na quarta séria do curso primário no Grupo Escolar Padre Américo Novais. A escola ficava na Rua Bernardo Vieira, no Bairro Novo; bem próximo a ela estavam a Serraria e movelaria União, que meu pai,  então, gerenciava, o Cine Bairro Novo e a Tipografia Brasil. Eu frequentei muito as oficinas da serraria por isso eu fiquei com certa familiaridade com as máquinas: serra de fita, plaina desempenadeira, serra circular, furadeira, tupia, coladeira, tornos de bancada, e suas ferramentas manuais: arco de pua, serrotes, martelos, grosas, formões, chaves de fenda entre  outras. Meu pai havia me ensinado quase todos os nomes dos apetrechos indispensáveis que compunham a maquinaria e caixa de ferramentas indispensáveis a um profissional marceneiro. Por mera curiosidade eu lhe perguntava vez por outra que tipo de madeira ele estava usando em móveis que estava a confeccionar, e assim também me familiarizei com madeiras como imbuia, pinho, cedro, sucupira, louro etc., inclusive o louro cagão pelo seu fedor que exalava de merda. Nunca demonstrei maior interesse pela arte da marcenaria ou carpintaria e seria inútil que meu pai tentasse me induzir a sua aprendizagem, o que nunca veio a acontecer, pois ele não me queria operário e sim que eu me dedicasse a estudar para que não viesse a ser mais um escravo da bancada de madeira.  A Tipografia Brasil que ficava do outro lado da rua logo me atraiu.  No intervalo do recreio escolar eu me deslocava até o galpão da tipografia e ficava a observar pelos janelões o trabalho dos tipógrafos com suas máquinas impressoras, guilhotina, prensa,  facão de corte, grampeador, furadeira e os cavaletes e mesas de composição para tipos móveis; o setor de acabamento só tinha mulheres, que intercalavam e confeccionavam blocos e talões. Dois dos meus vizinhos e amigos eram operários gráficos, Zezinha e Miltom. Desde aí, eu comecei a alimentar o desejo de aprender a profissão de tipógrafo. O meu pai a isso também se opunha, pois o seu projeto com relação ao meu futuro era outro e quanto a isso não faria nenhuma concessão. Ele alimentava a esperança de que eu viesse a fazer um curso superior, o sonho que cultivava era ter um doutor em  nossa família.

Por mediação de Miltom eu visitei as oficinas e pude melhor apreciar o processo de trabalho. O que mais me atraia era o trabalho dos operários que ordenavam letrinhas para compor o que chamavam de chapas para impressão.  Eu ficava observando como de rápido eles catavam das gavetas   dos armário as letrinhas que ordenavam  no componedor e depois levavam para bolandeira para completar o texto que haviam iniciado. Era impressionante aquela alquimia, pois dali saia o texto que aparecia impresso no papel. Vinha-me a mente de logo os livros escolares, de literatura, ciência, revistas, jornais e histórias de quadrinhos que lera na escola, na biblioteca de tia Neném ou comprava nas bancas de revistas. Tudo era fruto daquela oficina de sonhos. As artes gráficas desde então ficaram e não saíram de minha vida. Anos depois, quando fazia o primeiro ano do curso comercial básico, eu vim a conhecer Ernani de Araújo, gerente da Tipografia Brasil, meu professor de matemática, disciplina na qual eu era o melhor aluno da turma. Nunca conversei com ele sobre meu sonho de me tornar tipógrafo, até porque,  nesse tempo, eu desviara  o foco de interesse na direção da música. Isso certamente por influência, competição e mesmo um pouco de inveja  pelo que então estava a fazer meu querido amigo e quase irmão Kosinski, apelido Quinho, pois ele passara a frequentar o curso de música que era ministrado pelo maestro Miro de Oliveira, regente da Banda de Música 11 de Setembro, que pertencia ao município. Quinho foi minha maior referência de amizade e admiração durante a infância.

Caixeta com Tipos Móveis e Componedor

Jaboatão, 1962.   Comecei me envolver com o jornal alternativo Dia Virá, e  desde então eu passei a acompanhar Alberto Cunha Melo nas suas idas até a pequena oficina gráfica em que o jornal era composto e impresso. A composição era feita manualmente em tipos móveis, e a impressão do jornal era feita numa  máquina impressora elétrica manual com tintagem de platina. O nosso trabalho era revisar as provas dos textos entregues para composição, e dias depois rever as provas de páginas inteiras para verificar se as emendas haviam sido feitas, se os títulos postos nos textos estavam corretos e as matérias estavam no lugar que fora definido no esboço de diagrama entregue a gráfica.  Por ser muito pequeno o espaço onde estava instalada a tipografia, o gerente, seu Cláudio, nos entregava as provas dos textos para revisar fora de lá.  Geralmente  a revisão era feita na casa de Alberto ou na maternidade Maria Rita Barradas, nos dias em que Zé Luis se encontrava no plantão médico. O contato com essa pequena tipografia voltou a despertar  meu interesse pela arte gráfica, mas não tão importante que me fizesse retomar a vontade inicial de aprender esse ofício.

Recife, 1963. Ao me tornar profissional do Partido Comunista Brasileiro, quinzenalmente todas as sextas-feiras eu me dirigia à sede do PCB, no edifício Vieira da Cunha, Rua Floriano Peixoto, para conversar e relatar pra David Capistrano, Secretário do Comitê Estadual e assistente do CM de Jaboatão, a respeito do trabalho que eu havia feito para cumprir a tarefa que me havia sido dada pelo CE. A tarefa que me destinou a  direção estadual foi reorganizar as Organizações de Base (OBs) do PCB, na cidade e principalmente no campo, com vistas a realização da Conferência Municipal do PCB em Jaboatão. Não era uma tarefa nada fácil, pois o companheiro Elias,  responsável pela assistência as bases do partido nas áreas rurais dos municípios de Jaboatão e Moreno, havia aderido as Ligas Camponesas e se deslocado para o interior de Goiás para participar de treinamento com vistas a organização da luta armada guerrilheira sob a liderança de Francisco Julião. O pior é que Elias levara com ele todas as informações relacionadas com o trabalho que há anos fazia para o PCB. O trabalho que Elias desenvolvia no campo estava ligado diretamente ao CE, e, portanto, os companheiros do partido em Jaboatão não tinham o mínimo controle de suas atividades junto aos trabalhadores rurais. As ligações que o CE do PCB conseguiu refazer com companheiros do campo com militância no sindicato serviu de base para retomada das ações de reorganização das antigas bases rurais. Para que esse trabalho lentamente fosse sendo reconstruído, eu contei com a colaboração de Cirilo, um sitiante  que trabalhava em terras da usina Jaboatão. A sábia orientação que recebia de David Capistrano nesses encontros semanais era fundamental, e eu procurava executar a tarefa da melhor maneira possível.


Linotipo com operador
A redação do jornal “A Hora”, órgão de imprensa do PCB, funcionava no mesmo andar em que estava sediado o Comitê Estadual. Vez por outra, David convidava-me a acompanhá-lo para que continuássemos a conversa num velho Jipe durante o percurso da Rua Floriano Peixoto à Praça Sérgio Loreto, onde ficava a as oficinas gráficas do jornal. Na gráfica, geralmente David apanhava encomendas impressas para entregar à fregueses instalados nas imediações, principalmente os que ficavam no Bairro de Recife. Para o itinerário de entregas quase sempre eu o acompanhava, pois a conversa muitas vezes era longa, e somente terminava quando a gente retornava ao ponto de partida: a redação do jornal e sede do PCB.  Nessas rápidas visitas, eu passei a conhecer os operários e as máquinas que compunham e imprimiam o jornal, e fiquei sobretudo impressionado com o funcionamento da linotipo, que de modo mágico engolia  chumbo derretido numa caldeira e cuspia linhas de texto fundidas em pequenas barrinhas do metal. Era uma máquina bonita e milagrosa.

Ainda em 1963, eu conheci em Jaboatão o tipografo Fernando, que trabalhava numa empresa gráfica de Recife, salvo engano, como compositor manual, mais conhecido nas tipografias como chapista. Fernando era tipógrafo de formação em escola: Liceu de Artes de Recife, SENAI ou Escola Técnica Federal, por isso conhecia muito bem seu ofício; além disso, era um bom leitor fazendo jus à tradição histórica dos profissionais da área e, apesar de jovem, já havia trabalhado em muitas empresas gráficas de Pernambuco. Através de meu amigo Fernando eu tomei conhecimento de Josué de Castro, e ainda por sua insistência eu comecei a ler a obra do grande estudioso do problema da fome no Brasil e no mundo.     Inicialmente, emprestou-me seu exemplar de O livro negro da fome, comprometendo-se a me ceder outro livro intitulado Geografia da fome. Mesmo sendo um pobre, a minha pobreza contudo estava longe de ser comparada com a miséria daquelas populações que Josué colocara em suas páginas. O livro causou-me profunda impressão e revolta. Através de Fernando soube ainda que Josué era deputado federal, e que havia proferido recentemente conferência no Teatro Santa Isabel, dentro das atividades preparatórias para o Congresso Internacional de Solidariedade a Cuba, pois a ilha revolucionária estava naquele momento ameaçada de nova invasão por tropas norte-americanas. Josué, segundo Fernando, havia cativado o público que havia lotado o Teatro Santa Isabel, com um discurso de mais de três horas sob o tema: Cuba não está só. Fernando era um intelectual da classe operária, um ativista político e sindical; por ele fui levado à sede do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Gráficas de Pernambuco, que estava instalada à época na Rua Direita, e apresentado ao seu histórico dirigente e líder Edvaldo Ratis. Com Fernando aprendi muito sobre política e sindicato e, sobretudo, sobre o funcionamento de uma oficina gráfica.

Como fecho dessas minhas anotações sobre meus contatos iniciais com as artes gráficas, eu quero registrar o papel que desempenhou o professor Pedrinho, orientador da disciplina Caligrafia, assunto que estudei no segundo ano do curso Comercial Básico da Escola Técnica de Comércio de Ribeirão. Durante todo um semestre, Pedrinho, munido com três grossos cadernos de anotações, discorria a respeito da história e evolução da escrita no ocidente.  Com ele aprendi sobre os principais suportes nos quais através do tempo repousaram a arte da escrita: tabletes de argila, papiro, pergaminho, trapos e modernamente o papel. Os sistemas de escrita dos povos antigos: hieroglífica, pictográfica, cuneiforme etc., até a adoção do alfabeto. O papel dos copistas na evolução da escrita e na divulgação das artes e ciências. A invenção dos tipos móveis por Gutenberg e a grande revolução que causou nas comunicações. Através de sua disciplina eu tomei conhecimento dos grandes desenhistas de tipos e impressores:  Luca Pacioli, Aldus Manutius, Bodoni, Griffo, Robert Granjon, Nicholas Jenson, William Caslon, Didot, entre outros.



Pedrinho era contador muito conceituado na cidade, dono de escritório de contabilidade instalado na Praça Estácio Coimbra, Praça do Jacaré como a ela se referia o poeta Marcus Accioly, e possuidor de uma bela forma de escrita, um calígráfo.  Os livros contábeis eram à época quase todos escriturados à mão, e exigiam uma boa escritura: legível, bonita e harmoniosa, e para os alunos que pretendiam tornarem-se profissionais de escritório ou contadores valia a pena prestar bem atenção as suas interessantíssimas aulas. Pedrinho sempre dava aulas todo paramentado, terno e gravata, aliás, isso parecia ser norma da escola, pois todos os professores homens costumavam fazer o mesmo, as mulheres por sua vez trajavam uma bata azul celeste. Pedrinho era muito exigente, vendia seu peixe caro, suas avaliações orais e escritas eram rigorosas, por isso a turma não o tinha em bom conceito. Anos depois, quando passei a ler sistematicamente livros sobre artes gráficas e a escrita eu pude melhor avaliar o quanto me fora útil os primeiros passos pelos caminhos da caligrafia.

Um comentário:

NATANAEL (OROBÓ 1954) disse...

Eita grande amigo Pedro, como é bom relembrar o seu início em Jaboatão quando eu era balconista do Café Leão. Natanael Gomes