segunda-feira, 11 de março de 2013

Crítica de Cinemo - AKIRA KUROSAWA ou a Alma dividida de Cipango - Fernando Monteiro


Akira Kurosawa

 “Eu estava nu na bacia. O local em volta era vagamente iluminado e enquanto eu me encharcava de água quente, balançava a bacia segurando-me nas bordas. Na parte mais baixa, a bacia balançava entre duas tábuas inclinadas. Eu ouvia o barulho da água que se chocava quando a bacia se movia de um lado para a outro. Aquilo devia estar muito interessante para mim. Balancei a bacia com toda a força. De repente, ela virou. Tenho uma lembrança viva do estranho sentimento de insegurança e surpresa que experimentei naquele instante, da sensação na pele causada pelas tábuas e escorregadias. Lembro-me de alguma coisa que brilhava intensamente, quando olhei para cima.”

 Essa é a mais remota lembrança da infância de Akira Kurosawa, de acordo com o relato do próprio cineasta na sua autobiografia (Gama no Abura, Iwanami Shoten, Tóquio, 1984). A recordação pulsa como a cena de um filme ou a aquarela do banho de uma criança, delicadamente pintada com um espanar de água que sugere as gravuras coloridas do pintor Hiroshige, num Japão – ou “Cipango”, para o viajante veneziano Marco Polo – ainda arcaico enquanto o século dezenove rolava para o vinte como um rolo de fumaça de trem subindo na paisagem de inverno aos pés do monte Fuji.

Tudo é impressivo e delicado, quando se trata desse diretor nascido há 100 anos, que quis ser pintor e terminou pintando com uma câmera que pôs o cinema do seu longínquo país em contato com as telas do mundo. No cinema, Kurosawa pintou aquarelas e gravuras, animadas a buril, de samurais hieráticos e modernos marginais da Tóquio aniquilada pela vergonha da derrota – numa nação capaz de levar a honra nacional e, mesmo, a individual, desde o domínio patriótico e moral até o limite da monomania. Foi assim com o suicídio público do escritor Yukio Mishima, arrasado pela alma nacional rendida aos americanos (segunda ele, “com desonra”).

Mishima foi um nacionalista perturbado por visões que o aproximaram de um perfil neofascista, mas Akira (que também tentou o suicídio) foi um japonês capaz de compreender “honra” de outro modo, entre os códigos nipônicos antigos e o desespero do Japão do típico lumpen de cidade grande, de megalópole próxima – como é Tóquio – dos cenários da ficção científica de mistura com templos de silêncios recônditos, jardins em miniatura e modernas gueixas ainda exercendo a sua profissão sempre confundida com outra (pela grosseria ocidental)...

Depois de vermos o pequeno Kurosawa nu (detalhe: ele tinha apenas um ano, e a recordação ficou, entre os vapores do banho na bacia, remotíssimo), mudemos a perspectiva para diante do túmulo do cineasta, com as datas marcadas à maneira japonesa 黒澤 – nascido em 23 de março de 1910 e falecido em 6 de setembro de 1998”.  

             Poderia ser acrescentado: Aqui repousa o Homem da Alma Dividida entre Oriente e Ocidente, Samurais e Yakuzas, Cerimônias do Chá e Pregões da Bolsa de uma capital enlouquecida de néons acesos noite e dia, piscando como os olhos de um velho dragão herdeiro de algum mundo de repente sem lugar no século da Bomba.


QUEM FOI?

 Quem foi Akira Kurosawa? – perguntarão os jovens leitores desta revista diante da mesma velocidade de mudança que determinou o ocaso da Terra do Sol Nascente. Acima de tudo, Kurosawa foi o mais popular dos grandes cineastas japoneses. Tal título é dele – e ninguém tasca.

         Nascido no seio de uma família de samurais que ficaram sem emprego quando suas espadas se tornaram anacrônicas – como os seis tiros dos pistoleiros do Oeste americano –, iriam se passar muitos anos, desde os banhos da infância, para surgir o homem, inquieto, a trabalhar com as tábuas escorregadias da memória.

         Antes disso, ele tentou ser aceito numa escola de arte, porém foi rejeitado talvez de modo menos traumático do que o reservado a um cabo austríaco (e aquarelista medíocre) que viu ruir a esperança de sobreviver vendendo inofensivas paisagens de inofensivos campos...

Seja como for, em 1936 o futuro diretor de Trono Manchado de Sangue terminou por ler, um dia, anúncio de vaga para assistentes de direção de cinema. Ele foi lá, e o aceitaram, não pelos pendores de pintor amador, mas pela experiência de espectador de cinema: desde garoto, via filmes como se necessitasse deles para respirar o perfume dos crisântemos.

Aos 33 anos, Kurosawa dirigiria seu primeiro filme – Sanshiro Sugata (ou “A saga do judô”) –, que foi alvo de crítica de militares rígidos, porém agradou ao público. O êxito em escala internacional, no entanto, só viria com Rashomon (1951), filme baseado num conto original de Ryunosuke Akutagawa e que conquistou o Leão de Ouro do Festival Internacional de Cinema de Veneza, no mesmo ano.

Pronto. Akira Kurosawa estava lançado mais para além de Tóquio e Kioto. Certamente, o seu talento não era maior do que os de Ozu e de Mizoguchi, gênios também oriundos de uma cultura ainda injustamente ignorada (cinematograficamente falando), naquela altura. E a pedra de toque do reconhecimento dela não vai ser senão o sucesso de filmes como Shichinin no samurai (“Os Sete Samurais”, de 1954), uma saga do Japão feudal que chegou a influenciar John Sturges, mestre de westerns do outro lado do mundo. Diretamente inspirado nos sete samurais de Kurosawa, surgiriam os pistoleiros sturgianos do clássico Sete homens e um destino (1960), inaugurando o filão dos remakes transpostos para cenários completamente diversos.       

Cineasta reflexivo, esse japonês que aqui recordamos transitou pelo ambiente internacional de filmes em muitos idiomas e propostas etc, como um sofisticado diretor quase silencioso nos “sets”, porém bem humorado e articulado nas entrevistas coletivas. Em tais ocasiões, era possível ouvi-lo (tive o privilégio, em Roma) a explicar coisas mais objetivas e práticas do que a vaga teoria de bares enfumaçados dos cigarros da nouvelle vague. Exemplo:

“A tarefa dos iluminadores exige muita criatividade. Um iluminador realmente bom tem seu próprio plano, embora naturalmente ainda precise discuti-lo com o cameraman e o diretor. Mas se ele não desenvolve o seu próprio conceito, seu trabalho não vai muito além de colocar luz sobre toda a estrutura montada. Eu penso, por exemplo, que o método corrente de iluminação dos filmes coloridos é errado. Para compor as cores, toda a estrutura é inundada de luz. Sempre digo que a luz deve ser tratada como em um filme em preto e branco, sejam as cores fortes ou não, de forma a deixar as sombras aparecerem.”

Aqui, Akira Kurosawa está querendo dizer (atenção, jovens diretores brasileiros) que a Cor não aboliu o império da sombra, no cinema, ou melhor, que cores têm funções diversas, e são linguagem, forma, vocábulo fílmico, ao invés de apenas “estarem alí”, impressas na película sem exame.

Noutro momento, suas meditações deixaram críticos fascinados, em Cannes:

“Não me lembro quem disse que criação é memória... (...) Minhas próprias experiências e as diversas coisas que li permanecem em minha lembrança e tornam-se a base sobre a qual crio algo novo. Eu não poderia partir do nada. Talvez ninguém possa, é preciso um arranco, como ao escrever roteiros – quando se deve, antes, partir de alguma cena impressa na lembrança, alguma idéia que bóia como um calhau num rio lamacento. Sim, também é necessário o estudo dos grandes romances e das grandes peças teatrais que o mundo produziu. Deve-se procurar saber por que são grandes. De onde vem a emoção que se sente ao ler? Que grau de paixão o autor teve de perseguir, que nível de meticulosidade teve de impor para modelar os personagens e os fatos da maneira como fez? Deve-se ler inteiramente, a ponto de se compreender todas estas coisas. Deve-se também assistir aos grandes filmes”... 

E Kurosawa os assistiu, desde a adolescência, quando seu irmão mais velho tornou-se narrador profissional de filmes mudos (isso existia – no peculiar “Cipango”, lógico); tendo acesso às salas onde o irmão “narrava” os filmes, o jovem Akira anotava todos os filmes que via. De graça.

No seu relato autobiográfico, é longa a relação lista das obras que ele considerava fundamentais na sua formação, e entre elas está um filme franco-brasileiro: Rien que les heures (1926), de Alberto Cavalcanti dizendo “presente!” numa lista de nomes de ouro: John Ford, Jean Renoir, Charles Chaplin, Fritz Lang, Sergei Eisenstein, Carl Dreyer, Luis Buñuel etc.

            
ORIENTE VERSUS OCIDENTE

 O jovem japonês apaixonado por cinema encontraria no diretor Kajirô Yamamato o “mestre” da profissão, no sentido técnico da palavra. Kurosawa ainda trabalharia como assistente de Mikio Naruse, Eisuke Takizawa e outros diretores não destinados a obterem o sucesso do discípulo, na segunda metade do século passado.

Anos depois, chegaria a vez de Akira se sentir meio “deixado de lado”, quando as críticas ao seu “ocidentalismo” – para alguns – seriam somadas à sua [má] fama de perfeccionista até os mínimos detalhes, estourando orçamentos... e, por uma única ocasião, levado á tentativa de suicídio, em 1971 (para total surpresa dos amigos e familiares), quando se viu afetado pela crise na indústria cinematográfica japonesa, quando “um filme de Kurosawa” significava um orçamento já proibitivo para um cinema que deixara de ser a a novidade, descoberta preferida de uma Europa encantada com obras ao mesmo tempo fincadas em tradições e numa modernidade difícil pem se tratando do orgulhoso Império posto de joelhos, num dia, e levantado para se “americanizar”, no outro.

O cinema – e a vida – de Kurosawa refletem esse impasse não da forma mais direta e nem com fixação num passado que não poderia voltar (como lamentam cultores dos filmes de samurais desempregados e perdidos, atingidos no seu código de honra e humilhados até a necessidade de mendigar restos de glória e comida).

Nesse sentido foi que Akira considerou seu vigésimo-oitavo filme como “a sua obra definitiva”, isto é, Ran, o filme mais caro do cinema japonês (11 milhões de dólares, em 1985), e talvez o mais devastadoramente desiludido, expressando a contrafação trágica, de matiz shakespereano, da qual Kurosawa foi próximo por afinidade e admiração do Bardo acima de todos os poetas do Ocidente. Uma das melhores adaptações cinematográficas de Macbeth foi assinada pelo diretor nipônico – que transportou a peça inglesa para o dramático clima “kabuki” de belo Kumonosu-jô (1957). Deu mais do que certo.

 OCIDENTE VERSUS ORIENTE           

Sem admiradores fervorosos do peso de um Francis Ford Coppola e um George Lucas, Kurosawa não teria realizado seus últimos filmes. Sob a influência (quase pressão) desses dois “kurosawamaníacos”, a Twentieth Century Fox se dispôs a negociar a aquisição dos direitos de distribuição internacional de Kagemusha (“A sombra do Samurai”, 1980) e dos demais filmes da uma “fase final de A. K” mergulhada em controvérsia, porque apoiada na fortaleza – “proibida”, ideologicamente, para alguns dos seus colegas japoneses – que o colocou definitivamente em associação com o poder de Hollywood.

Já declinando em sua aura de prestígio nacional – na razão diretamente proporcional à dependência da aprovação pela máquina americana (acidamente criticada etc) – o diretor iria pagar caro pela “mãozinha” generosa dos Coppolas & Lucas de estrondosos sucessos de bilheteria como O poderoso Chefão e Guerra nas estrelas. Talvez só eles pudessem realmente ajudá-lo, com os recursos de quem se entendia “muito bem” com os gerentes financeiros da maior indústria cinematográfica do planeta – para a qual Akira Kurosawa trabalhou, nos seus últimos anos. Afinal de contas, ele podia ter a certeza de haver consolidado mais do que uma carreira difícil numa cinematografia hoje rendida à imitação, infelizmente. Afirmando seu mundo pessoal em conexão com o Japão profundo, sem dúvida que ele obteve ampla ressonância como o diretor japonês – o único! – mais ou menos situado como Federico Fellini está para a história do cinema italiano.

Mesmo que se “redescubra” um Valerio Zurlini – ou um Francesco Rosi – debaixo da nuvem espessa de admiração pelo cineasta de Rimini, o fato é que o nome alçado ao panteão nem sempre é o do mais sutil ou o do mais complexamente talentoso dentre diretores que se tornaram “míticos” como um Antonioni, um Visconti, um Bergman, um Buñuel, um Ford, um Lang e um  黒澤 , o tímido senhor de óculos escuros que, há cem anos, nascia num país de samurais errantes e cerejeiras como as que cercam o seu túmulo. 

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